sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

56 - Holocausto de inocentes.

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A propósito da tragédia que atingiu o Haiti.

Mas as crianças , Senhor,
Porque lhes dais tanta dor,
Porque sofrem assim?
Augusto Gil
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Não sei se Deus existe. Mas se há um Deus que nos governa e tem o poder que Lhe atribuem, exijo explicações. Que pecado monstruoso terá cometido o povo haitiano, porventura o mais desgraçado à face do planeta, para merecer tal punição? Dizem que foi um capricho da mãe natureza. Mãe madrasta esta, que com tão estranha e incompreensível manifestação de amor envolve seus filhos.
O desconsolo e a impotência tomam conta de mim. Eu queria, eu devia estar lá. Dispensaria as expedições de batedores… De bom grado partiria com a minha mochilita às costas, na certeza de que teria de dormir na rua, comer o pão do demónio, beber onde bebem os cães. Por paga desejaria apenas acolher na minha, a mão de um moribundo, animar o menino que numa questão de segundos ficou sem família, espantar as ratazanas que devoram os cadáveres.
Também seria capaz de amputar um membro morto pela gangrena, ajudar a nascer uma criança ou acalmar a dor de um corpo mutilado. Mas não! Aqui estou eu, parte integrante de um exército de involuntários ociosos, porque até na desgraça há que respeitar hierarquias, prioridades, formalismos, interesses, em nome da suprema hipocrisia mascarada de ajuda. Mal por mal, prefiro as lágrimas da hiena às do compungido crocodilo.
Entretanto, os contabilistas do share audiovisual hão-de prendar-nos com textos que de tão repetidos mais parecem uma litania, ornamentados com imagens chocantes, as mais chocantes que conseguirem adquirir no leilão da bolsa mundial das desgraças. Também elas repetidas até à exaustão. Porque já lá vão três dias, não tardará o momento em que nos será servido o prato forte de todos os pesadelos, como a agonia dos que tendo sobrevivido ao impacto de pedregulhos e ferros retorcidos acabam morrendo às mãos dos micróbios, da fome e da sede. Rostos inchados e disformes cobertos de varejas darão close-up’s fabulosos, enquanto cadáveres a serem despejados por pás carregadoras em valas comuns, gritos que já não passam de gemidos dos que permanecem enclausurados sob a grande escombreira que já foi uma cidade, ou o cachorro que se passeia com uma perna humana atravessada na boca perante a indiferença dos transeuntes, farão a felicidade dos principais editorialistas da nossa praça. Tudo em nome do direito de informar, da partilha de audiências … do vil metal como já lhe chamaram.
Não há limite ético que contrarie o direito de informar e à informação, dizem os comunicadores sociais. Concordo, se de informação se tratar. Mas quantos esquemas, quanta manipulação por detrás desta pseudo-informação!? Ainda agora tivemos o caso da campanha alarmista da pandemia de gripe A que afinal não há. Não há, mas houve quem se abotoasse com milhares de milhões. E o dinheiro de tanta conta aberta em tudo quanto é banco, supostamente destinado a acções visando diminuir o sofrimento das vítimas, quem o controla, a que bolsos vai parar. Que dizer quanto ao balanço, isenção, tratamento igual, de acontecimentos idênticos em suma?
Ouvi uma curta entrevista do Dr. Fernando Nobre da Ami, à TSF. Logo nas horas que se seguiram ao trágico acontecimento, previu ele e não falhou nada, que o circo mediático e não só (o circo é meu), não tardaria a ser montado, avançando para isso a seguinte explicação: Muitos haitianos têm nacionalidade norte-americana e no país, existe uma força de manutenção de paz (manutenção de quê?), integrando militares de vários países, alguns dos quais também foram vitimados pelo sismo. Li nas suas palavras uma profunda mágoa por uma tragédia de amplitude semelhante ocorrida recentemente numa cidade Iraniana que simplesmente desapareceu do mapa, não ter merecido atenção e mobilização semelhantes por parte da cada vez mais desacreditada comunidade internacional, em geral, e da comunicação social em particular. Pessoas são pessoas, independentemente do país onde vivem ou do regime a que estão sujeitas. A compaixão é, talvez, o mais elevado sentimento humano, aquele que nos distingue radicalmente das feras e como tal, não pode nem deve fazer qualquer descriminação entre inimigos e amigos, ou amigos dos amigos, como se tem visto ultimamente.
E como não tenho a memória curta, pergunto: Quem se lembra, ou simplesmente deu conta, de que em 8 de Outubro de 2005, um sismo matou perto de uma centena de milhar de pessoas no norte do Paquistão, das quais 17000 eram crianças segundo dados da Unicef, deixando mais de dois milhões de seres humanos sem abrigo, comida, água ou medicamentos? Quem estremeceu ou perdeu uma noite de sono com os 75 000 mortos e cinco milhões de desalojados por um terramoto na província de Sichuan, China, por altura dos últimos jogos olímpicos (12 de Maio de 2008)?
E como não tenho a memória curta, não posso deixar de referir algumas tragédias humanitárias causadas ao Homem por vontade do seu irmão, como Dresden, Hiroshima, Hanoi, Bagdad … e os respectivos danos colaterais que se contam pelos milhões de vítimas inocentes, tão desvalorizados pelos nossos noticiaristas e comentadores da treta. Terá sido porque estes não eram amigos dos nossos amigos? A contrastar, notai as faces exibindo esgares orgásticos quando os ditos cujos ao lado de videowall’s gigantescos descreviam todas as potencialidades das maravilhosas e moderníssimas máquinas de matar gente e arrasar cidades, que não pedem meças a um sismozeco de grau sete.
Afinal Deus existe mesmo, o que estava era um pouco distraído quando engendrou esta humanidade. Com a capacidade que me deu para julgar, penso que deve estar arrependido e pretende corrigir o erro. Começou pelos inocentes, estará o cálice reservado para os que ficarem? Ai de nós!
Juan_jovi@sapo.pt

1 comentário:

  1. Solidário!
    Estou solidário nas tuas Palavras.
    Estou revoltado como tu estás revoltado.
    Não sei outras palavras que não sejam as que proferiste.
    Assim, fico-me por aqui, impotente e lamentando que tantos homens façam tão pouco por tanta gente que sofre sem culpa, sem saber como viver e sem esperança.
    ...

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