quinta-feira, 3 de maio de 2012

91 - A Farda e a Arma.

E o Apito ...
Na Índia, como de resto em muitos outros países, vestir um uniforme confere a qualquer cidadão um indiscutível status. Melhor ainda se, a par do uniforme, for dado ao bacano o direito ao porte de arma. E se a arma pertencer ao estado (militares, polícia etç.), então estamos perante alguém!
A paranoia securitária desta sociedade é inaudita. Por todo o lado se vêm ninhos de metralhadora, devidamente guarnecidos, construídos com sacos de areia: Nos átrios do metro e nas plataformas dos comboios, ao longo das principais  avenidas da cidade e até nos passeios das ruas comerciais mais movimentadas. Lá terão as suas razões, razões essas que na qualidade de visitante não posso nem devo discutir. Agora que incomoda, incomoda, e ninguém diga o contrário! Nunca vi tanta gente exibindo arma a não ser, talvez, em Maputo que visitei há uns anos quando o país acabava de sair de uma guerra civil. É verdade que os homens das forças policiais – há-as de vários tipos – andam bem equipados quanto à artilharia com que se fazem acompanhar para todo o lado. Já a maioria dos “securitas” apenas tem direito ao porte de canhangulos que são verdadeiras relíquias; caçadeiras de um ou dois canos laterais e cães à vista, tão velhinhas que o oxidado original, preto para quem não sabe, há muito desapareceu. Estas armas são agora da cor das panelas quando bem areadas devido à polidela diária e obrigatória.
Mas aqui, na Índia, também há a burocracia securitária. Eis alguns exemplos: Para se comprar um simples cartão SIM a fim de fazer chamadas mais baratas, é-nos exigida documentação em que entram fotocópias de Visa e Passaporte, nome do hotel onde estamos alojados, itinerário anterior, cidade e país de destino, fotografia a cores, números de telefone e residência em Portugal, impressos, declarações e assinaturas várias. Para usar um computador na área da recepção do hotel (Parkway Deluxe) onde redijo este post, em Delhi, tive que assinar um documento onde basicamente constava tudo quanto atrás descrevi mais o nome do pai e da mãe! Para se adquirir um mero bilhete de comboio é necessária papelada que em rigor e volume equivale à que nos é solicitada em Portugal para se fazer uma escritura no notário. Qualquer recém encartado recepcionista de hotel, escalpeliza os nossos documentos como se fosse um oficial do serviço de estrangeiros e fronteiras do seu país. E tem razão, fá-lo para não ser ele entalado. A polícia vem todas as noites escrutinar e rubricar o livro onde se encontram registados os hóspedes, sempre à procura de eventuais falhas. Eu próprio fui “arrancado” da cama através de uma chamada telefónica e convidado a dirigir-me até junto de um destes indivíduos para explicar como é que podia estar alojado no hotel antes de ter dado entrada na Índia ?! Conferidos os dados do passaporte e detectada a burrice fui mandado de volta para a cama! Nem a pedido de desculpas tive direito.
Esta paranoia é geral, colectiva e acima de tudo ridícula para não dizer mesmo risível. É certo que o estado de permanente crispação com o vizinho do norte tem passado por perigosas fases de agudização agravadas pelos acontecimentos de há dois ou tês anos em Mumbai. Mas, daí a transformar o país numa espécie de estado policial e controleiro como aqueles de que se ouvia falar na vigência do defunto Bloco de Leste, parece um exagero. Sobretudo, porque as medidas tomadas são, mesmo aos olhos de num leigo, de todo inefectivas. Por exemplo: Não há loja digna desse nome, centro comercial, hotel de gama média, condomínio, parque ou jardim etç, etç, que não tenha segurança pública ou privada. Para além desta, há os “agentes” cuja função é revistar os utilizadores desses espaços. Lá estão também os conhecidos pórticos, dispositivos de RX  que vasculham a nossa bagagem à semelhança do que acontece hoje em dia nos aeroportos. Porém, são tantas as falhas que observei no sistema que a meu ver a sua única valia terá sido a criação de milhares de postos de “trabalho”.  Cito as situações em que autênticas enxurradas humanas acedendo a cada minuto às plataformas dos comboios ou Metro, com pessoas e mercadorias a saltarem por cima ou por baixo de muros, cercas ou barreiras electrónicas, ou infiltrando-se através de passagens interditas, se furtam assim, virtualmente, a qualquer tipo de controlo. Os oficiais lá estão, até parecendo que atentos aos monitores de RX ou às manobras de eventuais prevaricadores. Fiquei no entanto com a impressão de que não raramente estão a passar pelas brasas ou a namorar ao telefone como ainda hoje constatei ser o caso de uma jovem e bonita polícia! No Hindustantimes de hoje (24/04), pode ler-se o seguinte título: “10 sacos que poderiam ter sido dez bombas”. A história desenvolve-se deste modo: Uma equipa do jornal abandonou em dez pontos estratégicos da cidade onde é exigida a mais alta segurança, dez sacos contendo objectos metálicos, restos de papel amachucado e garrafas. Pois pasme-se, estas pseudo-bombas ali ficaram durante horas até que alguém desse por elas. No comment! Pela minha parte, ninguém me tira da cabeça que o mesmo poderia ter acontecido em qualquer outra cidade do mundo. Todas aquelas medidas, que ainda por cima implicam o pagamento de taxas como é o caso do transporte aéreo, não são mais do que operações de cosmética para convencer os papalvos de que tudo está bem e seguro no reino da Dinamarca. Não posso terminar este texto sem fazer referência a uma outra situação, deveras cómica, que tenho presenciado. É a seguinte: Neste país, qualquer pessoa a quem tenha sido atribuído o mais leve vestígio de “autoridade”, faz-se acompanhar sempre de um cacete de bambu com mais ou menos metro e meio de comprido. São os polícias, numa mão a espingarda na outra o varapau, vigilantes e guardas, funcionários do Metro e da Índia Railways (ou ao seu serviço), contínuos e porteiros. Usam-no em simultâneo com estridentes apitadelas para pôr o pessoal na fila, para o tirar da fila, para o fazer calar, avançar ou recuar, para o dividir por grupos, para lhe balizar ou impedir a passagem … Até vi um velho Imã de uma mesquita correr à paulada um crente que se esqueceu de tirar os sapatos à entrada do templo! Acho que, em determinada ocasião, eu próprio não apanhei umas arrochadas por ter a tez um pouco mais clara! Porém, parece-me óbvio que não existe por detrás desta forma de actuação nenhuma vontade de dar porrada em quem quer que seja. O cajado terá apenas valor simbólico. Reforça a autoridade e mostra a todos quem é que manda. As suas raízes podem situar-se, talvez, no tempo da ocupação colonial. Ou não. Mas não deixa de ser desconcertante que em pleno século XXI, naquela que é a maior democracia do mundo, um povo pacífico, afável (e fatalista), aceite resignadamente estas tropelias. Entrega-se de corpo e alma aos seus Deuses e, como a maioria de nós, acredita pouco nos políticos!
Neste texto deixei alguns salpicos que não são de irritação, apenas de alguma ironia. Contudo, e antes de terminar, quero deixar uma homenagem e a expressão do meu sincero agradecimento às autoridades, funcionários públicos e trabalhadores do sector privado e de uma maneira geral a todo o povo indiano, pela forma simpática, amistosa e sobretudo tolerante como só ele sabe receber os seus visitantes. Fica aqui também a garantia de que hei-de voltar!

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