domingo, 8 de maio de 2016

161 - A grande Viagem.

Histórias com nomes.

Pelos padrões de hoje, o Manuel era ainda um menino quando “assentou praça”. Depois de uns volteios com a G3 e umas quantas quedas na máscara com e sem pirueta, atribuíram-lhe a especialidade de corneteiro. Na tropa, o corneteiro é o militar que, à ordem do comandante e através de toques do seu clarim, manda executar e sincroniza um vasto conjunto manobras. É o homem postado frente às tropas em parada, mas pode também marcar o ritmo da marcha de uma força em movimento, anuncia a toda a sua unidade que é hora das refeições, de recolher, fazer silêncio ou levantar (alvorada), está presente no içar e arrear da bandeira nacional, preside ao render da guarda, presta honras militares a vivos e a mortos etç. Digamos que se expressa numa linguagem simples que todo o militar conhece e, se não existissem as palavras, seria o bastante para que cada um soubesse em cada momento aquilo que o corpo militar a que pertence espera de si. 
Os corneteiros têm um treino longo e difícil, são muitas horas a soprar no clarim, instrumento semelhante a uma pequena trompete sem válvulas, palheta ou pistons, cuja sonoridade depende do talento do artista. Para a sua produção musical, não dispõe de outra coisa que não sejam os lábios que aperta ou relaxa na embocadura do dito. Posso garantir-vos que a música até pode soar bem ao ouvido do zé magala, sobretudo quando a ordem subjacente é para descan...sar ou vamos ao tacho. Outras vezes é muito triste, como acontece com o toque fúnebre O Silêncio. Ao ouvi-lo, velhos ou jovens militares mergulham numa profunda melancolia, o coração transborda de saudade e, mesmo que não tenham amigo ou familiar morto em combate, acontece que nem o mais teso consegue segurar a lagrimita! Ouçam-no no Youtube: “O toque do Silêncio = Taps em inglês” 
Na guerra que nós conhecemos, a do Ultramar, não se praticavam cargas a toque de caixa ou de clarim como se vê em certos filmes retratando antigas cenas de guerra. É comum dizer-se que se dança conforme a música. Nós dançávamos ao ritmo dos rebentamentos de morteiro e rpg´s, das rajadas de kalash, degtariev´s ou ppsh e tantos outros utensílios que seria enfadonho citá-los a todos. Nestas circunstâncias, os corneteiros estavam dispensados de actividades ditas operacionais, reservadas aos ases do gatilho.
O Manuel sempre me pareceu o fruto de um casual encontro entre o azar e a má sorte. Para além da pobreza extrema, desconheço outros pormenores da sua infância. Sei sim, que ainda muito novo se mudou de Matosinhos para o Porto a fim de trabalhar como empregado de mesa e assim ajudar a criar irmãos mais novos como era costume na altura. Foi no exercício dessas funções que o conheci, na tropa. Não participando directamente em acções de combate por não ter sido essa a sua preparação, o Manuel ficou adstrito ao serviço na messe de oficiais e sargentos e, nessas funções, revelou-se um militar digno de louvor a todos os títulos. Competente, sempre atento às preferências dos seus superiores, o que mais impressionava neste homem era o seu nível de delicadeza, entre o aprumo militar e a humildade bem educada. No olhar, uma sombra de tristeza cujos porquês ninguém ousava questionar. Apesar da confiança e amizade que granjeou junto dos seus maiores, raramente o vi sorrir ou soltar uma graçola tão ao jeito dos seus colegas na vida civil.
Como a maioria dos outros elementos da Companhia de Caçadores 2753, passou à disponibilidade em Agosto de 1972, regressando à terra natal (?) na região do Porto. Passaram-se muitos anos, mais de trinta, sem que alguém soubesse dar notícias do Manuel. Sem êxito, procurei-o no antigo endereço de jovem mancebo, por bares e esplanadas da capital do norte. É de referir que na altura não existiam telemóveis e os fixos não eram para todos. Evidentemente que face-book, twitter etç., nem em sonhos.
Apareceu um dia num convívio realizado ali para os lados de Santa Comba, para o qual se conseguiu reunir apenas um pequeno grupo de ex-militares da nossa Companhia. Talvez por se encontrar bastante deprimido, parecia mais apático que nunca, aparentando alguma dificuldade em suportar a profunda tristeza que lhe ia na alma e com a qual convivia desde criança.
Falou-me por alto dos problemas de saúde e familiares que o atormentavam. Abandonado pela mulher, desprezado por uma filha que havia ajudado (?) a licenciar, vítima de doença oncológica que o debilitara imenso, refugiara-se no álcool e, com esta atitude, agravou naturalmente, todos os problemas que já tinha. 
Depois de dar à costa voltou a estar presente num outro encontro, este na região das Caldas da Rainha onde compareceu, aproveitando a boleia e a companhia de um ex-graduado da C. Caç, também ele residente no Norte. Nos entretantos, quer através de pedidos de ajuda formulados por telefone umas vezes, por carta outras, fui ajudando conforme a urgência dos pedidos e as minhas possibilidades. Para a renda, para a comida, para os medicamentos e até para o selo da carta, o Manuel estava permanentemente nas lonas. Desfazia-se em juras, tais como, desta vez não é para a bebida, “meu alferes”. Apesar da minha insistência nunca consegui que me tratasse de outra forma que não fosse respeitando a ortodoxia militar.
Recebi o seu último SOS em Janeiro último no momento em que embarcava no Sá Carneiro para visitar outro camarada residente em S. Miguel, também em apuros devido a problemas de saúde. O SMS dizia: “Meu alferes, tenho fome, há três dias que não como nada. Com a ajuda que me enviou mandei reparar o frigorífico … está vazio”.
Logo que que pude, entrei em contacto com a secção da Liga dos Combatentes de Leça que fez o impossível para que este camarada tivesse ajuda imediata. Referenciado para todas as instituições de solidariedade com capacidade para intervir, foi apoiado, orientado e sobretudo recebeu algum calor humano que o ajudou a levantar-se do chão. Em poucos meses renasceu o homem simples, humilde e bondoso que sempre foi. Estava no bom caminho, a ponto de ser integrado numa comunidade de ajuda para recuperação de outros com problemas idênticos.
Há cerca de duas semanas, depois de um fim de semana em que estive ausente, deparei-me com uma chamada não atendida no meu tm. Devolvi-a, era do sr. Coronel Armando, presidente da secção da Liga dos Combatentes de Leça a informar-me que o soldado Corneteiro nº 00260269, Manuel Ferreira dos Santos se tinha ausentado para a sua última e Grande Viagem.
E que não havia ninguém contactável para proceder ao levantamento do corpo.
De "Os Lusíadas ( Canto VIII - estrofe 32)" retiro: Ditosa pátria que tal filho teve.

Acrescento: E vós, Pátria, como o tratastes?!

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